IV PRÊMIO DE FOTOGRAFIA ARTHUR NAPOLEÃO FIGUEIREDO
Ensaios Vencedores
1º Lugar
Cuidar para não morrer: retratos babawro
Babawro, ou “pica-paus”, era como tradicionalmente se chamavam os Akuntsú, povo falante de língua da subfamília Tupari (tupi) que atualmente vive dentro dos limites da Terra Indígena Rio Omerê, em meio a pastagens e fazendas monocultoras, no sul de Rondônia. Sobreviventes de inúmeros massacres que aconteceram como fruto da colonização dos vazios amazônicos, eles foram contatados em 1995 pela FUNAI e são hoje uma das populações mais vulneráveis do mundo, tendo sido reduzidos a três mulheres adultas: Pugapía, Aiga e Babawru. Num mundo onde as crianças não nascem mais, os pássaros conquistaram um lugar central. O cuidado com as aves, especialmente sua alimentação, ocupa grande parte da vida cotidiana das mulheres. Em sua pequena maloca, Pugapía, Aiga e Babawru dormem junto com mais de dez aves. Os mais queridos são os maracanãs, ave da família dos papagaios, que carregam consigo nos ombros ou apoiados em um pedaço de pau para todo lugar onde vão. A eles se referem como u mempit peru, cuja tradução literal é “meu filho papagaio”. Como explica a linguista Carolina Aragon (2014): “o morfema usado nas línguas Makuráp, Tuparí e Mekéns relacionadas (membros da subfamília Tuparí), identificado como classificador genitivo para sinalizar posse de animais é, em Akuntsú, substituído por termos de parentesco, como se os animais possuídos fossem agora tratados como filhos ou filhas”. Entre os babawro, as aves deixaram de ser “familiarizadas” (COSTA, 2013) para se tornarem, de fato, familiares. Existir na sombra do genocídio transformou a subjetividade das mulheres Akuntsú. Os pássaros são os últimos, os que restaram. Viverão enquanto viverem os pássaros.
Referências bibliográficas
COSTA, Luiz. Alimentação e Comensalidade entre os Kanamari da Amazônia Ocidental. Mana 19(3): 473-504, 2013.
ARAGON, Carolina. A Grammar of Akuntsú, a Tupían Language. Tese de doutorado. Mãnoa: University of Hawai’i at Mãnoa, 2014.

Luciana Keller
Mestre em antropologia social e bacharel em ciência política, ambos pela Universidade de Brasília, e desde 2017 realiza pesquisa na Terra Indígena Rio Omerê (RO), entre os Kanoê e os Akuntsú
2º Lugar
Optcha! Cigano não é religião? Uma análise da atuação, performance e rituais entre ciganos na cidade do Rio de Janeiro.
Esse ensaio tem como proposta analisar a atuação de diferentes atores que compõem o cenário cigano que vem se formando na cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos. Optei por destacar dois rituais que acompanhei em meu trabalho de campo durante a pesquisa do doutorado, apresentando alguns dos ciganos que estiveram presentes e suas participações e atuações nesses rituais. Nas imagens apresento, descrevo e destaco em uma narrativa fotográfica e etnográfica, assim, proponho refletir sobre cada um dos dois rituais como cenários de situações sociais (GLUCKMAN, 1987)1, para destacar no conjunto fotográfico questões que considero centrais para o entendimento das atuações.
O primeiro grupo de imagens (Fotografias 1 a 5) apresento o grupo chamado Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense da cidade do Rio de Janeiro. O grupo religioso é um dentre muitos, que se apresentam como tendas, tzaras ou tsaras, suas redes e como são acionados com regularidade por demais representações ciganas da cidade. Assim como outras muitas tzaras na cidade, o grupo Tenda Cigana Espiritualista Tzara Ramirez que, caracteriza-se por praticar um ritual, chamado Salamandra, em que os médiuns incorporam entidades chamadas ciganos de espírito (MAIA, 2014) para desenvolver seus rituais e performances de dança e música ciganas ganhando notoriedade e afirmando-se, assim, como ciganos, mas nesses casos em específico, enquanto ciganos de espírito.
O segundo grupo de imagens (Fotografias 6 a 8) foco na comemoração do Dia Nacional do Cigano e de Santa Sara Kali, a comemoração cigana de maior visibilidade que ocorre na cidade, um ritual que incorpora expressões cívicas, religiosas e culturais ciganas. O evento ocorre desde 25 de maio de 20062, quando por um decreto foi instituído o dia 24 de maio, o dia de Santa Sara Kali como Dia Nacional do Cigano no Brasil. Desde então, Mirian Stanescon que se intitula cigana de verdade. A gruta possui uma imagem da santa fixada e com isso o parque tornou-se um dos pontos de turismo religioso entrando no calendário oficial de eventos da Prefeitura da cidade em 2017. O evento conta com a presença de aproximadamente cinco mil pessoas e vem transformando o espaço público em um lugar de disputa e controvérsias sobre a questão cigana, sua cultura e religião. A partir da apresentação do ritual da cigana Mirian Stanescon3, proponho destacar, dessa maneira, mais uma das diferentes formas de ser cigano que acompanhei durante o processo de minha pesquisa. Nesse caso, aqueles que são ciganos afirmando-se enquanto ciganos de verdade, tal como se declara Mirian Stanescon.
Através desse ensaio fotográfico etnográfico, pretendo apresentar como as diferentes formas de representações ciganas, como os rituais dos ciganos de espirito e ciganos de verdade, constituem diferentes formas (BRAH, 2008)4 de ser cigano performatizados e ritualizadas na cidade do Rio de Janeiro na última década.

Cleiton Machado Maia
Pós Doutorando e Doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ. Mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRRJ. Desenvolve pesquisas nas áreas da Antropologia da Religião, Antropologia da Imagem, Antropologia da Cidade, Antropologia da Performance, Antropologia dos Ciganos e Antropologia Urbana. É pesquisador do grupo de pesquisa " DISTÚRBIO: Dispositivos, Tramas Urbanas, Ordens e Resistências", coordenado por Patrícia Birman. É integrante dos grupos de pesquisas: Dispositivos, Tramas Urbanas, Ordens e Resistências (Distúrbio) do PPCIS/UERJ e do Grupo de Pesquisa Dinâmicas Territoriais, Cultura e Religião da PPGCS/UFRRJ.
Menção Honrosa
Olhar de Soslaio
Fotografo deixando escapar segredos sagrados. Mas quem olha, às vezes, não vê. É preciso treinar o olhar de pesquisador. Nem tudo é dito. E nem tudo é possível de se dizer. Rabelo (2015) em seu artigo Aprender a ver no Candomblé diz que o “iaô treina a atenção para ver o que não está diretamente acessível ao seu olhar”1. O antropólogo-fotógrafo também treina. É o olhar de soslaio, “uma visão de relance, discreta e rápida”. Treina o olhar para o invisível presente no visível. Apreende a lidar com as respostas de silêncios. Os desejos, as vontades, as disputas, as entrelinhas… O que o mundo invisível pode nos desvelar por meio das imagens?
A Rainha tem fome de vida. Ela bebe, fuma, canta, gira e gargalha. Assim, sara e cura a sua comunidade, seu terreiro. Dá alegria, amor, saúde, graça e esperança. E recebe o banquete para a festa. A Rainha Pombagira Sete Encruzilhadas da Cabana do Preto Velho da Mata Escura encarna no Pai Valdo de Yansã. As imagens deste ensaio foram produzidas em 2019 na ocasião da matança para a grande festa que ocorre no segundo sábado de novembro, em Fortaleza. Este trabalho é, também, uma homenagem póstuma à Yalorixá Mona de Oyá, que fez sua passagem durante a pandemia gerada pelo Covid-19. A Pombagira reina. Laroyê!
As imagens são parte da pesquisa que resultou na dissertação de mestrado em antropologia pelo PPGA associado da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), orientada pela Prof.ª Dr.ª Jânia Perla Diógenes de Aquino. A Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP) financiou a pesquisa.

Jean dos Anjos
Nascido e criado em Fortaleza-CE, macumbeiro, artista, fotógrafo, antropólogo, pesquisador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI/UFC).
Menção Honrosa
Beneditas
O ensaio é composto na maioria por retratos, feitos entre os anos de 2014 a 2019, nos dias 25 e 26 de dezembro. Em 2014 comecei fotografar a Marujada de Bragança e logo pude observar o poder que a liderança feminina exerce nessa festa. A liderança nas danças, nas apresentações, nas procissões, nos ensinamentos é exercida por uma mulher chamada capitoa, a quem marujas e marujos devem obediência, respeito e lealdade. A Marujada é um matriarcado, onde somente mulheres podem exercer a liderança, homens tem apenas a função de tocadores de instrumentos musicais, acompanhantes nas danças e carregadores do andor de São Benedito. Tamanha autoridade é exercida por senhoras simples, de origem humilde, conhecedoras e guardiãs dos saberes de uma das manifestações cultural e religiosa mais importante do estado.
Benedita é o nome mais comum entre as marujas, é o nome escolhido pelos pais para homenagear ou pagar alguma promessa ao Santo Preto. “Beneditas” é a homenagem que faço às mulheres bragantinas, mulheres fortes na fé inabalável em São Benedito, mulheres detentoras de saberes ancestrais, mulheres batalhadoras, mulheres que plantam e pescam, mulheres que comandam seus lares, mulheres resistentes por natureza, mulheres representadas neste trabalho pelas marujas da Marujada.

Karina Martins
Nasceu em Belém/PA, onde reside e trabalha. Tem formação livre em fotografia. Desde 2013 participa de exposições coletivas e festivais de fotografia no Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Sua pesquisa fotográfica abrange religiões de matriz africana no Pará, práticas de religiosidade popular, sincretismo religioso, manifestações de cultura e tradição popular, manifestações de rua e lugares de afeto e memória, esse último usando a fotografia pin hole como suporte.
Ensaios Selecionados
Há um mundo aqui dentro
As fotografias que compõem o ensaio foram feitas em casa nos dias 01 e 07 de Maio de 2020, após 40 dias em isolamento social. A criança é minha filha, que na ocasião tinha 3 anos e 7 meses. A ideia de fazer o ensaio surgiu porque, mesmo depois de vários dias confinada, percebi que ela continuava alegre e cheia de energia, contrariando minhas expectativas sobre os efeitos do isolamento social no comportamento infantil. Depois de dias de muito cansaço, de medo e do stress que eu procurava dissimular, percebi que ela não dependia das minhas ideias para se ocupar, pois bastava que eu me dispusesse a acompanhá-la nas suas criações. Foi então que passei a observar com mais curiosidade a maneira como ela passava os dias em casa, e pude constatar que não havia monotonia em sua rotina. Percebi que ela brincava com qualquer coisa, transformando os usos, os espaços e os sentidos de tudo ao seu redor. Foi então que decidi explorar com um registro fotográfico essa possibilidade aberta em pleno isolamento social: a possibilidade de reinventar a si mesmo e a própria casa. Portanto, o ensaio buscou registrar os aspectos onírico e lúdico do universo infantil em tempos de isolamento social. Escolhi usar composições em preto e branco para fugir do realismo que as cores naturais podem representar e, assim, causar uma sensação de fantasia e surrealismo próprios da imaginação infantil. Para intensificar essa sensação, desfoquei o fundo das imagens, para imprimir profundidade e continuidade aos ambientes de forma borrada, tal como no sonho. Também intensifiquei contrastes e utilizei luz dramática para causar distorção e mais impressões difusas. Com estas ferramentas, procurei compor cenas que expressam emoções, enfatizando as brincadeiras e o olhar distante da criança que sugere fugir da realidade, imaginando um ambiente com possibilidades não realistas.

Bárbara Duarte Casseb
Professora no IFPA/Campus Belém. Graduada em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela UFPA e mestre em Antropologia Social pela UnB. Atualmente, desenvolve projetos e pesquisas na área Audiovisual.
O ato que não houve, mas que aconteceu duas vezes: a manifestação antiracista e antifascista em junho de 2020 e a repressão policial na capital paraense
O presente ensaio é o relato de uma manifestação que não houve, mas que aconteceu duas vezes. No lugar daquilo que deveria ter sido, restou a expressão máxima do que se previa combater: o racismo e a truculência policial; o fascismo e o genocidio da população negra. As imagens dão conta da violência com a qual jovens que se concentravam para um ato pacifico em uma praça da capital paraense, foram reprimidos por um forte e simbólico aparato policial, resultando na detenção de vários estudantes. As mesmas imagens, frente o cenário de repressão estabelecido, também evocam a resistência, a tenacidade e a pujança de um povo acostumado a resistir; que só vive porque historicamente resiste.
A manifestação previa ser uma extensão das manifestações que passaram a ocorrer nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd no dia vinte e cinco de maio, quando um polical branco pressionou com o joelho sua garganta por quase nove minutos, asfixiando-o. A truculência e a torpeza do policial contra Floyd, fizeram despertar em várias partes do mundo a necessidade de se lutar contra a hostilidade e a violência com as quais seguem sendo tratada a diáspora negra, depois de anos de escravidão e preconceito, especialmente pelos orgãos de repressão do Estado.
Não tardou para que, mesmo em meio a pandemia causada pelo novo coronavirus, o eco das manifestações chegassem ao Brasil e mobilizasse os movimentos sociais e os coletivos negros. Em Belém, no bojo de uma articulação reunida sob o lema “Vidas Negras Importam”, a manifestação foi programada para acontecer na manhã do dia 7 de junho, na praça do trabalhador, em frente ao mercado de São Brás. No entanto, o que era para ser um ato de protesto contra o fascismo, o racismo e o genocidio da população negra, acabou se transformando em uma ode à repressão figurada justamente pela polícia militar do estado, em uma mega operação que impediu ostensivamente que o ato ocorresse. Assim que chegaram no local da concentração do evento, os manifestantes, em sua maioria estudantes, negros e da periferia, se depararam com o um forte aparato policial cercando toda a extensão da praça e uma parte consideravel da avenida ao longo da qual ela está localizada. Com a justificativa de que estavam infringindo os decretos municipais e estaduais, que determinavam o distanciamento social por conta da pandemia, os policiais impediram a manifestação e levaram presos cerca de 112 manifestantes, entre eles 96 adultos e 16 menores, que permaneceram várias horas sentados no saguão da seccional do bairro da Cremação, sob escaldante sol, aguardando a instauração dos procedimentos policiais.

Cícero Pedrosa Neto
É repórter multimídia, colaborador da Agência Amazônia Real de Jornalismo Independente e Investigativo. É sociólogo de formação e mestrando em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Pará, pesquisando os desastres ambientais da mineração/cadeia do alumínio na cidade de Barcarena-Pa. Contermplado com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”. Atualmente é bolsista do Amazon Rainforest Journalism Fund – Pulitzer Center.
Parteiras Tradicionais
Desde 2008 fotografo parteiras, inicialmente para a pesquisa Inventário dos Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais de Pernambuco, posteriormente complementada pelo Inventário dos Saberes e Práticas das Parteiras Indígenas de Pernambuco e, atualmente, Pesquisa dos saberes e práticas das parteiras tradicionais do Brasil com vistas à instrução do processo de Registro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil (Museu da Parteira / UFPE / IPHAN).
Durante esses anos, tive contato com cerca de trezentas parteiras, inicialmente em todo o estado de Pernambuco, mas englobando também Amapá, Goiás e Maranhão. O objetivo é buscar conhecer o universo dessas mulheres: quem são elas, onde vivem, como são suas casas, os caminhos que percorrem, seus entornos, os utensílios, a religiosidade, os saberes associados, os vestígios e as inscrições de suas práticas como parteiras. Nossos intuitos são de pesquisa, documentação, articulação em rede e visibilidade.
O ensaio aqui apresentado é um recorte deste conjunto que venho produzindo. Este material vem sendo utilizado tanto nos documentos e dossiês resultantes das diversas etapas do percurso, como também em outros formatos como exposições e publicações. Fizemos duas edições da exposição itinerante “Parteiras, um mundo pelas mãos”, que percorreu as localidades por onde passei fotografando, sempre com o envolvimento das parteiras nos processos de decisão e produção das mostras. Essas oportunidades também eram maneiras de acioná-las em encontros, rodas de diálogos e troca de experiências, entre parteiras, representantes de instituições locais – governamentais e não-governamentais -, além da comunidade em si, estudantes, visitantes e curiosos.
O projeto fotográfico se pauta pela importância do diálogo e a consciência das contradições, ambiguidades e complexidades inerentes à linguagem fotográfica na sua relação com os/as fotografados/as. Seus limites e aberturas como discurso se inserem nas escolhas tomadas ao longo do trabalho. Sendo um levantamento de longo prazo, algumas decisões foram tomadas para permitir uma unidade e coerência, envolvendo iluminação, aproximação e abordagem. Todo o trabalho é feito com luz existente, disponível no local. O tempo também é crucial para o desenvolvimento: o tempo delas, o que elas permitem. Em alguns casos voltei muitas vezes, estendi o contato desde lá no início até hoje. Com outras encontrei menos. Mas sempre em paralelo com entrevistas e outras dinâmicas da pesquisa maior, envolvendo uma grande equipe de pesquisadoras e pesquisadores. Isso permite um aprofundamento maior. Acredito na potência das imagens na articulação de saberes, mas também nos seus limites tensionados nas buscas documentais, entendendo que as aberturas, contaminações e ambiguidades inerentes à fotografia são também parte do que compõe o humano e suas relações socioculturais, de modo que não devem ser negligenciadas na nossa prática como pesquisadores.

Eduardo Queiroga
Fotógrafo e professor. Autor dos livros “Cordão” e “Coletivos fotográficos contemporâneos”. Cofundador da Escola Livre de Imagem e do Projeto FotoLibras. Fotografa parteiras tradicionais de Pernambuco desde 2008, trabalho que integra diversos projetos do Museu da Parteira. É doutor pelo PPGCOM-UFPE. Um dos idealizadores do Pequeno Encontro da Fotografia. Acompanha projetos de pesquisa artística junto a autores.
Memórias tangíveis: morada e tempo
Os cercados e suas casas seguem suas rotinas em Almofala, terra do povo indígena Tremembé. A temporalidade sensivelmente marcada nas paisagens é aqui captada pelas texturas das construções, dos cajueiros e dos objetos que circulam no cotidiano; é também presente nas gerações que ali crescem e se nutrem do emaranhado de vidas e histórias que sinuosamente encaminham-se rente a cercas e estradas. As moradas, não sendo apenas produtos resultantes de uma subjetivação do espaço, são, antes, elaborações simbióticas de gente, parentesco e terra. As casas, com seu hermético interior, cerrado e quente, rivaliza com a brisa fresca – maresia – que balança as folhas dos pés de árvore, e que faz tremular as tucuns, pequenas redes de fios trançados onde descansam parentes, vizinhos e visitantes. Este ensaio, à guisa de falar sobre moradas, trata sobre o sensível, o tempo, a criação de parentesco e a terra.

Janaína Fernandes
Antropóloga, professora do Instituto Federal de Goiás, Campus Formosa, doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília. Tem atuado junto ao povo Tremembé, do Ceará, desde 2011.

Naiara Demarco
Fotógrafa documental e autoral, tem realizado exposições sobre povos e movimentos indígenas desde 2017. Participou da pesquisa de campo de dez meses com Janaína Fernandes e possui um vasto repertório de fotografias sobre os Tremembé de Almofala.
“Olhar para fora, sentir-se ilha”
Vivências de um rio cansado, aposentado pelo progresso
O rio Jari, divisa natural dos estados do Pará e Amapá, ficou conhecido mundialmente por abrigar um dos principais projetos de desenvolvimento em território amazônico, cuja implantação remonta à década de 1970. Nesse afluente da margem esquerda do Amazonas, histórias de lutas e re-existências são contadas com o vigor da memória envolvida pelo tempo: o tempo da chuva, o tempo da safra, o tempo da cheia, o tempo do progresso, que supostamente chegaria com o tal projeto. Fruto de políticas governamentais articuladas à iniciativa privada e ao capital internacional, com intuito de “povoar” e “desenvolver” economicamente a região, o Projeto Jari, voltado para a produção de celulose em grande escala para exportação, produziu intensas transformações na região, desde as beiras do rio até as beiras das estradas. Para receber o projeto, o Jari foi cavado em local estratégico, produzindo um lago artificial onde ancoram os navios de carga e onde está instalada a fábrica de duas plataformas, uma geradora de força e outra de celulose, cada uma equivalente a um prédio de quinze andares1. Diariamente, toneladas de madeira entram por um lado da fábrica e saem pelo outro, em pacotes pendurados por um guindaste que os leva ao interior dos navios2. A fumaça densamente branca que, noite e dia, sai de seis chaminés, confunde-se com as nuvens, encobrindo os astros. Ao longo de 40 anos, o projeto passou por várias fases e donos, foi objeto de diversos interesses e intensificou a migração para a região, contribuindo para a emergência do beiradão e do beiradinho no Jari3, bem como para a emergência de disputas políticas e territoriais. Beiradão e beiradinho são moradas dos peões da fábrica e contrastam radicalmente com as companys towns, dotadas de infraestrutura e serviços para fornecer qualidade de vida à mão-de-obra qualificada. Para as comunidades agroextrativistas locais, porém, o Jari é o lugar do “ouro que dá em cima da terra”: a castanha-do-Pará, que é explorada historicamente e faz parte da economia local, sendo utilizada tanto para o consumo das famílias como para geração de renda. É por sobre suas cansadas águas que a castanha é enviada para as capitais da região, de onde segue para exportação4. Olhá-lo de perto e navegá-lo, produz diversas sensações, sobretudo de angústia e desolação5. Exaurido, carrega às suas margens imagens derradeiras da contradição, desigualdade e marginalização. As mesmas sensações irrompem nas beiras das estradas, onde vivem comunidades agroextrativistas que se sentem como “ilhas” cercadas de eucalipto6. Os gigantes eucaliptos representam certa privação de liberdade que acaba vetando horizontes dessas comunidades e sufocando um futuro próspero para seus descendentes7. Este ensaio fotográfico deseja despertar as sensações que as beiras do Jari provocam em quem nele vive e em quem o estranha.

Malenna Clier Farias
Nasceu em Faro/PA, onde morou até me mudar para Santarém/PA, para estudar na Universidade Federal do Oeste do Pará. É bacharela em Antropologia. Chegou em Belém em 2018, para estudar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia/UFPA. Atualmente cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia/UFPA e pesquisa, desde a graduação, processos de identificações de populações amazônicas.
O CARREGADOR DE CARNE
A imagem evidencia uma das alternativas de sobrevivência numa das maiores feiras livres do interior do estado do Pará, a Feira de Abaetetuba. A “profissão” de carregador da carne de porco expõe um duplo dilema em torno da questão alimentar: o processo saúde/doença e as fronteiras simbólicas/culturais. O interlocutor M.R (34 anos) trabalha carregando a comida para que seja comercializada. De modo informal, ele estabeleceu um período de três meses para realizar essa atividade, isto porque a sua tarefa tem como consequência o desenvolvimento de infecções, coceiras no corpo e inflamações nas articulações, por viver “mergulhado” no rio e no sangue do animal. O carregador expressa, também, “o alimentar” e os hábitos tradicionais de consumo das populações ribeirinhas da Amazônia paraense. Na perspectiva antropológica, entendemos “o alimentar” como um conjunto articulado de práticas e processos culturais, seus produtos e consequências em torno da alimentação. Na feira de Abaetetuba, a carne de porco para ser comercializada precisa estar embebida em seu próprio sangue. Entre os relatos obtidos, a “carne sangrando representar a vida, o que significa dizer que os maus espíritos não conseguem habitar o animal na hora da morte”. A preferência pela carne pode ser explicada, em parte pelo aspecto simbólico enfatizado nas proibições alimentares e nos tabus de ordem religiosa, ideológica ou folclóricas. Segundo a antropóloga Mary Douglas, a restrição à carne de porco seria a expressão de um conjunto de valores que fazem parte das noções de santidade e de integridade. E as regras de venda da carne de porco seria uma adaptação das regras cristãs, o qual classificariam os animais que são bons para o consumo. A fotografia foi capturada em pesquisa de campo durante a disciplina Antropologia da Alimentação em contextos de Povos e Comunidades Tradicionais (PPGA/IFCH/UFPA) em 2018.

Nádia Corrêa
É Doutoranda no Programa de pós-graduação em Antropologia, mestre e bacharel em Nutrição pela Universidade Federal do Pará, o qual contribui com pesquisas vinculadas à saúde e à segurança alimentar e nutricional de comunidades tradicionais, com ênfase para comunidades quilombolas amazônicas e movimentos afrodescendentes. É pesquisadora associada ao grupo Saúde da População Negra e ao Laboratório de Estudos Bioantropológicos de Saúde e Meio Ambiente (LEBIOS).
MÃE DÁGUA
“O aparelho colonial escravista seqüestrou filhos e filhas de uma única mãe. Corpos distintos em contato, embarcados rumo à mesma travessia. Talvez esteja nesse deslocamento forçado a primeira consciência de unidade fora de África. Penso ser a religião, um dos principais fundamentos desse movimento “.
No Maranhão, assim como boa parte dos Estados do Litoral Brasileiro, a diáspora unificou experiências de homens e mulheres arrancados da região Central e da Costa Ocidental africana. Submetidos ao esquecimento, a religiosidade é um dos principais elos de permanência, identificação e manutenção dessas tradições em contato com um território previamente colonizado. Reis, Rainhas e seus correspondentes espirituais ocuparam/ocupam lugares de trabalho e morada por todo território maranhense. No centro da Ilha de Upaon-Açu (São Luís), os terreiros matriarcais dos Tambores de Mina destinados ao culto de Voduns, Orixás e Gentis, demarcam espacialidade ao domínio feminino da água salgada. Iemanjá, por exemplo , reafirma sua posição como mãe, territorializando-se pelas praias e boqueirões. Cruzando e agregando narrativas já existentes.
Na medida em que as explorações dos corpos africanos se atualizavam, a experiência religiosa diaspórica entrava em contato com diferentes territórios. Nos salões de Pajés e Curadores da Baixada Maranhense, por exemplo, presenciamos a figura feminina da mãe d’água, correspondente aos domínios da água doce, alocadas em cacimbas e igarapés. As narrativas sobre mãe d’água moram na experiência do vivido, encruzando nossos caminhos desde à infância.
Integrando-se às matas e outros domínios, a água é um dos principais elementos da encantaria. Assim como “todas as águas vão para o mar”, o cruzamento da água doce com a salgada atualiza movimentos de migração, permitindo outros contatos e expandindo a encantaria e os encantados por outros territórios, subindo ao Norte ou descendo ao Nordeste brasileiro. Nesse sentido, é a multiplicidade contida nos fundamentos da encantaria, um dos principais fatores de expansão e manutenção desse Universo, onde corpos distintos continuam embarcados rumo a mesma travessia, sobre as mesmas águas.
RELATO PESSOAL ENCANTARIA: SENTIMENTO INDIVIDUAL DA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NO COTIDIANO EM CONTATO COM OS INVISÍVEIS/ENCANTADOS OU COM OS SEUS LUGARES DE MORADA. DESTE MODO, ENCANTARIA É A MANIFESTAÇÃO COLETIVA DESSA EXPERIÊNCIA.

Pablo Monteiro
Brincante da cultura popular maranhense e formado em História pela UEMA, Pablo Monteiro desenvolve trabalhos documentais a partir do uso da imagem e do som, dando ênfase para práticas ligadas ao universo afro-maranhense com destaque para a religião
Olhar “de perto e de dentro” sobre o meu território
O olhar dos que vivem mais próximo é capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles que são de fora e de longe do campo de atuação (MAGNANI, 2002). Os recursos imagéticos apresentados são resultados de oficinas fotoetnográficas e representam o Olhar “de perto e de dentro”, ou seja, dos usuários da Reserva Extrativista Marinha (RESEX-MAR) de Mocapajuba, em São Caetano de Odivelas – PA. A produção artística coletiva carregada de sentido social é marcada pela ambiência, proporcionando aos moradores o sentimento de pertença ao território.

Diego Tavares (Comunidade de Santa Maria da Barreta)
Alana Vilhena (Comunidade de Santa Maria da Barreta)
Jovanildo Rodrigues Martins (Comunidade de Santa Maria da Barreta)
Otávia Cardoso (Comunidade Alto Pereru)
Emily Mayara Almeida Lisboa (Comunidade Alto Pereru)
Jamili Silva (Comunidade Alto Pereru)
Daisa Silva (Comunidade Alto Pereru)
Alícia Pereira (Comunidade Alto Pereru)
Alan Ricardo de Aquino Lobato (Comunidade de Boa Vista)
Rita de Cassia Soares da Costa (Comunidade de Boa Vista)
Nascidos do Mangue
Mangue Útero. Água, rio e Barro – Mangue, não é lama, nem é barro. Mas entidade formadora de vida. Entre veias e artérias em forma de raízes de mangue. Espaço nascente de personagens que se moldam numa simbiose uma vez por ano na cidade de Curuçá para sair às ruas. O som do curimbó, banjo, sax, maracas e chocalhos, formam o ritmo que marca a batida dos nascidos do mangue. Que se levantam deslumbrados com o mundo novo que se abre aos olhos.
Essa paisagem se formou por meio de uma intensa interação entre culturas que a fez o município de Curuçá ser conhecido como a “Terra do Folclore”. Lar de encantados que habitam sua natureza exuberante, entre rios e raízes de manguezal, o município foi incrustado nessa relação entre ser humano e natureza. A partir disso fez surgir uma musicalidade moldada nessa interação entre sons da mata e dos rios que a fez também ser conhecida como “Terra do Carimbó”, entre rodopios e o batuque dos curimbós, os mestres cantadores cantam sobre pescadores e catadores de caranguejos dos mangues.
A forte manifestação cultural da região, que dialoga o ser humano com essa natureza indomável dos mangues, fez nascer um tradicional bloco de carnaval na cidade e que reverbera para outras regiões do estado do Pará e tem repercussão nacional: O “Pretinho do Mangue”. Criado em 1989 por dois amigos moradores da cidade, utilizaram essa forma de performance para demostrar sua frustração pelo fato de irem ao mangue para conseguir alimento e não obterem êxito na retirada do caranguejo, por conta da falta de cuidado das pessoas para com a preservação do espaço. Assim, eles se “montaram” com a lama como “nascidos do mangue”, saíram pela cidade para motivar o cuidado com essa natureza, para que não faltasse alimento no futuro. Em 2010 o bloco se tornou Patrimônio Cultural do Município através da lei nº 1.981, de 12 de fevereiro e Patrimônio Cultural do Estado do Pará por meio da lei nº 7.383, de 16 de março. Dada sua importância simbólica na região e no estado, que a cada ano atrai mais seguidores.
Nesse processo de “construção das fantasias”, o corpo atua como molde para a matéria-prima, onde todos os integrantes criam suas “personagens” moldadas pelo mangue. Outra forma de refletir é que esses “brincantes”, nesse ato de criar suas “esculturas” a partir da lama, pode-se pensar numa leitura a partir do mito do surgimento da humanidade, “homem e mulher são nascidos do barro”, nesse caso, do mangue. Dessa forma, isso não representa apenas um simples momento de se “sujar”, mas um diálogo com a paisagem. Uma espécie de simbiose entre o humano e a natureza, os tornando unos diante dessa Numinosa paisagem curuçaense.

Thiago Guimarães Azevedo
Professor Assistente no curso de Design da Universidade do Estado do Pará, Doutorando em Artes pelo PPGARTES/UFPA, Mestre em Artes pelo PPGARTES/UFPA, graduação em Bacharel em Design com Habilitação em Produtos pela Universidade do Estado do Pará (2006). Fiz cursos com Miguel Chikaoka e Luiz Braga. Curuçá tem sido um espaço para desenvolvimento fotográfico artístico-documental.
MORROS VIVOS
O presente ensaio faz uma abordagem sobre a relação de reciprocidade entre os seres humanos e não-humanos que coabitam os morros vivos do povoado Pixaim. Comunidade que localizada às margens do Rio São Francisco, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Piaçabuçu, no extremo litoral Sul do estado de Alagoas, no Nordeste do Brasil, possui dinâmicas cosmológicas onde as coisas não-humanas (areias, morros, ventos e rio) possuem características humanas como o falar, o andar, o nascer e o morrer, entre outras competências.
Com uma linguagem própria que valoriza a simetria entre Natureza e Cultura defendida pela Antropologia Ecológica, as imagens propõem um exercício, a partir das concepções do Cinema Transcultural elaboradas por David MacDougall, que envolve a ideia de uma produção visual que busca eliminar as fronteiras culturais entre os envolvidos: o EU (pesquisador) e os OUTROS (intelorcutores/espectadores) a partir de mediações de trocas de conhecimentos e informações entre os diversos agentes envolvidos no processo da pesquisa.
Desta forma, o ensaio etnográfico segue uma estética própria onde estão presentes imagens de seres humanos em justaposição com imagens dos não-humanos. Estabelecendo uma narrativa onde ambos os seres atuam como informantes sobre as dinâmicas de vida do lugar, em uma tentativa de eliminar a dicotomia de Cultura e Natureza mostrando que humanos e os seres não-humanos compartilham memórias, experiências e conhecimentos ao coabitarem o Pixaim.
O ensaio ‘Morros Vivos’ é uma produção do laboratório de pesquisa de Antropologia Visual em Alagoas (AVAL) e parte da dissertação de mestrado ‘Nos Morros Vivos de Pixaim – As dinâmicas dos conhecimentos no ambiente’, que foi defendida no primeiro semestre de 2018 no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social (PPGAS), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Waldson Costa
Doutorando do Programa de Pós-graduação de Antropologia (PPGA-UFBA) Mestre em Antropologia Social (UFAL), e graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UFAL); desenvolve pesquisas etnográficas na região do Delta do Rio São Francisco, no Nordeste do Brasil. Fotógrafo e documentarista atualmente é professor no curso de Comunicação Social da UFAL e pesquisador do Laboratório Antropologia Visual em Alagoas (AVAL).